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Conselho Constitucional

Quarenta e quatro dias depois, o Conselho Constitucional (CC) divulgou, na última sexta-feira, 24 de Novembro de 2023, os resultados eleitorais de 61 das 65 autarquias que, no dia 11 de Outubro último, foram à votação. Através de medidas administrativas, o CC retirou votos significativos ao partido Frelimo, fazendo com que, em pelo menos em quatro autarquias, a Renamo se tornasse vencedora, contrariando os resultados que haviam sido anunciados pela Comissão Nacional de Eleições (CNE). Entretanto, este órgão de soberania e último de recurso e contencioso eleitoral não foi preciso sobre a matemática que usou para fazer com que certos Municipios passassem à gestão da oposição e outros, igualmente contestados e com indícios de irregularidades gravíssimas, se mantivessem com o partido no poder. Para o Consórcio Eleitoral Mais Integridade, o facto de os acórdãos do CC serem irrecorríveis não os torna infalíveis e, mais ainda, exige, exactamente, a necessidade de terem uma maior fundamentação.

Comparativamente a acórdãos anteriores de validação e proclamação de resultados eleitorais, é preciso, antes de mais, reconhecer que, em relação, às queixas apresentadas pelos partidos da oposição, desta vez, o CC não se limitou apenas a analisar formalidades administrativas, mas analisou também o mérito das reclamações. De facto, dos 76 recursos de contencioso eleitoral exercidos em 16 anos de eleições autárquicas, em Moçambique, 73 não tiveram provimento devido a erros processuais, em que o CC nem sequer apreciou o seu mérito.

Em contrapartida, dos 35 recursos de contencioso eleitoral interpostos na eleição autárquica de 2023, nenhum foi rejeitado por erros processuais, tendo o CC apreciado e julgado o seu mérito. Neste sentido, o Acórdão n° 48/CC/2023, de 23 de Novembro, que valida os resultados eleitorais autárquicos de 2023, pode ser considerado como um acórdão didáctico. Mas atender ao mérito das reclamações da oposição não é, em si, suficiente para garantir a transparência e integridade de uma eleição – e aí reside a grande fragilidade do Acórdão n° 48/CC/2023.

Um dos aspectos mais críticos na decisão deste ano é o CC ter alterado resultados eleitorais sem explicar como é que chegou às alterações, particularmente se resultaram ou não de investigação própria. O Acórdão n° 48/CC/2023 indica, pois, que o CC decidiu alterar os resultados de apuramento geral nos Municipios da Matola, Marracuene e Matola-Rio (província de Maputo), Quelimane e Alto Molócue (Zambézia), Chiúre (Cabo Delgado), Xai-Xai (Gaza), Vilankulo (Inhambane) e na Cidade de Maputo.

E foram vários tipos de alterações, que carecem de explicação: entre eles, votos retirados à Frelimo e entregues à Renamo e que influenciaram o aumento de mandatos da Renamo; e votos retirados à Frelimo e entregues à Renamo, ao ponto de este partido da oposição vencer as eleições em alguns Municípios. A título de exemplo, em Chiúre, a Renamo passou de 11.766 (equivalentes a 16 mandatos), para 12.230 votos (17 mandatos), enquanto a Frelimo passou de 12.503 votos (17 mandatos), a 11.829 votos (16 mandatos), fazendo com que a Renamo passasse à liderança do Município, contrariamente aos resultados que haviam sido divulgados pela CNE.

O mesmo aconteceu em Quelimane, onde a Renamo passou de 36.399 votos (22 mandatos), a 39.021 votos (23 mandatos), e a Frelimo de 38.595 votos (23 mandatos), a 35.973 votos (22 mandatos). Na Vila de Alto-Molócue, a Renamo também passou de 6.078 votos a 9.353 votos (12 mandatos), e a Frelimo de 13.003 votos a 9.246 votos (11 mandatos). Também em Vilankulo, a Renamo passou de 9.798 votos (11 mandatos), a 10.740 votos (12 mandatos), e a Frelimo de 11.080 votos (12 mandatos), passou a 10.138 votos (11 mandatos).

No entanto, na cidade de Maputo, um dos Municípios onde a oposição mais disputou a vitória, a Renamo passou de 134.511 votos (24 mandatos) a 163.584 votos (30 mandatos), e a Frelimo de 235.406 votos (43 mandatos), para 206.333 votos (37 mandatos), o que não permitiu a oposição a ascender ao poder. O mesmo sucedeu na Matola, onde a Renamo passou de 130.687 votos (27 mandatos), a 158.228 votos e 32 mandatos, enquanto a Frelimo baixou de 207.261 votos (43 mandatos) para 178.90 votos (37 mandatos). Na vila de Marracuene, a Renamo também passou de 25.168 votos (18 mandatos), para 27 mil votos (19 mandatos), e a Frelimo de 34.441 votos (25 mandatos) para 32.609 votos (24 mandatos).

Entretanto, no lugar de uma explicação sobre como chegou a estas alterações, o CC limita-se a referir que “os resultados procederam da reverificação dos dados, de acordo com a prova produzida”, sem indicar, no concreto e por cada caso, a matéria que foi “reverificada” e, como tal, serviu de “prova”, nomeadamente se os editais e as actas do apuramento parcial nas mesas de votação; os editais e as actas do apuramento intermédo nas Comissões Distritais de Eleições; ou se o apuramento central pela CNE.

Além dos dados dos órgãos eleitorais, os partidos da oposição submeteram editais ao CC, mas não ficou claro se o órgão usou essas cópias, o que leva a questionar-se a utilidade prática das cópias de editais que os partidos recebem no fim do dia. O mesmo aplica-se aos observadores e à sociedade civil, que submeteu dados de contagem paralela - embora não haja obrigação legal de usar o material vindo da sociedade civil, o CC podia ter mostrado maior abertura em prol da verdade eleitoral.

Mesmo com competências para alterar dados por forma a impor a justiça, havendo elementos suficientes, nomeadamente editais a vários níveis, que consubstanciem ter havido vícios de contagem, o CC deve fundamentar as suas decisões. Mais ainda, se, porventura, as suas alterações serem de forma a influir no posicionamento do primeiro e o segundo cooncorrente, o CC deve mandar repetir a eleição.

Aliás, o CC decidiu mandar repetir a votação em algumas mesas de 4 Municípios, nomeadamente Nacala-Porto, em Nampula (num total de 18 mesas); Milange, Zambézia (3); Guruè, Zambézia (13). Em Marromeu, Sofala, o CC decidiu anular toda a votação, alegadamente, dada a influência que os ilícitos eleitorais tiveram na expressão da vontade popular e no exercício de direitos pelos delegados de candidatura. No entanto, uma vez mais, o órgão não fundamentou como chegou à estas decisões.

Questiona-se, por exemplo, por que o CC mandou repetir a votação no Município de Marromeu e não na cidade de Maputo e Matola, onde também foram reportadas graves irregularidades susceptíveis de influenciar o resultado eleitoral. Isto representa um retrocesso na jurisprudência do própio CC. Quando, em 2018, anulou os resultados de algumas mesas, em Marromeu, o CC investigou os casos e chegou à conclusão de que tinha havido irregularidades, que foram bem explicadas no respectivo acórdão.

Tanto em relação a Marromeu como nos outros Municípios onde o CC mandou repetir a eleição, existem perguntas sobre o que levou à decisão do órgão: Houve enchimentos de urnas? As reclamações da circulação de material eleitoral falso (editais e boletins de voto) se confirmaram? De quem é a responsabilidade da produção e circulação dos materiais eleitorais? Não são os empresários ligados ao partido Frelimo, que beneficiam de adjudições directas, com a cumplicidade das autoridades eleitorais? O CC teve medo de explicar isto? Por que o CC nada disse sobre votos especiais, que criaram diferença em muitas mesas?

Mais ainda, o Acórdão n° 48/CC/2023 nada diz sobre o tratamento que deve ser dado aos órgãos de administração eleitoral que subverteram o sentido de voto, incluindo em Marromeu, onde são reincidentes neste tipo de actos de alteração da verdade eleitoral. Igualmente, a Polícia actuou de forma particularmente violenta nas eleições deste ano, tendo, inclusivamente, causado mortes, mas o Acórdão do CC não tem sequer uma palavra sobre a actuação abusiva da PRM.

 

Posicionamento

 

Perante este cenário de falta de trasparência e clareza, o Consórcio Eleitoral Mais Integridade considera que o CC escusou-se a assegurar que a sua decisão se traduzisse na materialização do Estado de Direito Democrático e na realização da Paz Social, conforme a exortação feita pelo Consórcio no dia 1 de Novembro corrente. O Consórcio reitera, pois, que a principal função do Conselho Constitucional devia ser assegurar que as eleições no país não continuem a decorrer em clima de desconfiança e crispação, com incertezas derivadas da ausência da verdade eleitoral em virtude da actuação dos órgãos eleitorais, já de si descredibilizadas.

Com efeito, o CC perdeu oportunidade de enviar uma mensagem clara de que não pactua e nem tolera as graves irregularidades e ilícitos eleitorais registados nas autárquicas deste ano, que incluiram enchimentos de urnas, uso do voto especial para efectuar votos múltiplos, discrepâncias entre os resultados da contagem e os dados dos editais das mesas, desconformidade entre cópias dos editais originais distribuídos nas mesas das assembleias de voto e editais usados no apuramento intermédio em várias comissões distritais ou de cidade e a quase generalizada obstrução à observação eleitoral independente e à fiscalização pelos delegados de candidaturas.

Do documento apresentado na passada sexta-feira, extrai-se que CC coibiu-se de tomar decisões arrojadas, ainda que pudessem ferir certos interesses partidários, particularmente nas principais cidades como Maputo e Matola, abstendo-se, assim, de cumprir o seu papel como o último pilar da salvaguarda do nosso Estado de Direito Democrático.

Mas, ao mudar resultados em certas autarquias e mandar repetir em outras, o Acórdão deste órgão veio provar que os órgãos eleitorais, nomeadamente a CNE e o Secretariado Técnico de Administração Eleitoral (STAE), que chancelaram os resultados nas 65 autarquias, não estiveram ao serviço da verdade e da justiça eleitoral. Ao mesmo tempo que condena, nos termos mais veementes, a forma parcial como o CC, a CNE e o STAE actuaram, nestas eleições, que foi determinante para os resultados finais, podendo ser uma ameaça à paz e à estabilidade do país, o Consórcio Eleitoral Mais Integridade apela, igualmente, aos partidos da oposição, particularmente a Renamo, a canalizarem as suas reivindicações dentro de um quadro que garanta a manutenção da concórdia e da paz, que foi duramente conquistada.

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O Consórcio Eleitoral Mais Integridade observou, em todo o país, o processo eleitoral 2023, desde o recenseamento eleitoral, passando pela campanha eleitoral, votação e apuramento intermédio dos resultados, promulgação e divulgação dos resultados finais pelo Conselho Constitucional, e vai continuar a observar a repetição da votação em algumas mesas dos Municípios de Nacala-Porto, Milange e Guruè e a repetição, na totalidade, da votação, em Marromeu. Constituído em 2022, o Consórcio Eleitoral Mais Integridade tem como objectivo contribuir para a transparência e integridade do ciclo eleitoral 2023-2024, avaliando, de forma objectiva e isenta, o seu desenrolar, produzindo informação e análise públicas e credíveis sobre as várias fases do processo, incentivando o nível e a qualidade de participação dos cidadãos e contribuindo para a redução das tensões eleitorais.

É composto pela Comissão Episcopal de Justiça e Paz (CEJP) da Igreja Católica, Centro de Integridade Pública (CIP), Núcleo das Associações Femininas da Zambézia (NAFEZA), Solidariedade Moçambique (SoldMoz), Centro de Aprendizagem e Capacitação da Sociedade Civil (CESC), Capítulo Moçambicano do Instituto para Comunicação Social da África Austral (MISA Moçambique) e Fórum das Associações Moçambicanas de Pessoas com Deficiência (FAMOD).